domingo, 18 de fevereiro de 2018

MICHAEL OAKESHOTT - TRECHOS E FRAGMENTOS, SER UM CONSERVADOR E OUTROS.

 

" O objetivo deste ensaio é analisar o caráter e a história da mais notável moda intelectual da Europa pós-renascentista. Deixo claro aqui que o racionalismo com o qual me preocupo é o racionalismo moderno. Não há dúvida de que sua superfície reflete as luzes dos racionalismos de passados mais distantes, contudo, no fundo possui uma qualidade própria, e é essa qualidade que proponho levar em conta, tendo em vista seu impacto na política europeia. O que chamo de racionalismo na política não é, logicamente, a única (e não é, com certeza, a mais prolífica) moda no pensamento político europeu moderno. No entanto, é uma maneira vigorosa de pensar que, ao encontrar suporte nas filiações com o que é mais pungente na composição intelectual da Europa contemporânea, veio então a colorir as ideias, não apenas de uma, mas de todas as persuasões políticas, deixando suas marcas nas linhas de todos os partidos. De um jeito ou de outro, seja por convicção, seja por sua suposta inevitabilidade, seja por seus alegados sucessos, ou mesmo sem reflexão alguma, quase toda política atualmente se tornou racionalista ou algo muito próximo disso.

ideia de que tudo tem que recomeçar do zero) por causa da rapidez com que ele reduz o emaranhado e a variedade de experiências a um conjunto de princípios, os quais eventualmente vai atacar ou defender mediante bases racionais. Ele não leva em conta a acumulação da experiência, somente da prontidão da experiência quando esta foi convertida em uma fórmula: o passado é para ele somente um obstáculo.

o racionalista sempre prefere a invenção de um novo aparato ao uso de um expediente corrente e já testado. Não reconhece mudança, a não ser que ela tenha sido induzida de maneira autoconsciente, e por conseguinte, ele cai facilmente no erro de identificar o costumeiro e o tradicional como algo imóvel. Isso é claramente ilustrado pela atitude racionalista no que diz respeito à tradição das ideias. Não concebe, logicamente, o mérito de reter ou melhorar tal tradição, uma vez que ambas envolvem uma postura de submissão. Ela deve ser destruída! E, para preencher seu lugar, o racionalista coloca algo que ele mesmo cria, a saber: uma ideologia, uma condensação do suposto substrato da verdade racional contida na tradição apresentada em termos formais.


O fato de algo se colocar entre a sociedade e a satisfação de suas necessidades percebidasem cada momento na história deve soar para o racionalista como um canto místico e absurdo. E sua política é, na verdade, a solução racional de cada um desses enigmas ao longo do tempo, os quais o reconhecimento da soberania de tais necessidade percebidascria de forma perpetua na vida de uma sociedade. Dessa maneira, a vida política é dissolvida em um composto de sucessivas crises, cada qual a ser superada pela aplicação da razão. De fato, cada geração, cada administração, deveria ver diante de seus olhos o desvelamento de uma página em branco de infinitas possibilidades. E se por algum acaso essa tabula rasa houver sido deformada por alguns rabiscos de um ancestral contaminado pela praga da tradição, então a primeira tarefa do racionalista deve ser passar a borracha em cima: como destacou Voltaire, o único jeito de termos boas leis é queimando todas as leis existentes e começar do zero.2

Duas outras características da política racionalista devem ser observadas. Elas são a política da perfeição e a da uniformidade; qualquer uma delas sem a outra denota outro estilo de política, sendo a essência mesma do racionalismo sua combinação. A erradicação da imperfeição pode ser considerada o primeiro item do credo racionalista.


Bem, da forma como entendo, o racionalismo é a postura que defende que o que chamo de conhecimento prático não é conhecimento de maneira alguma, uma vez que postula que fora do conhecimento técnico não há lugar para nenhum outro conhecimento que se possa chamar de real. O racionalista sustenta que o único elemento envolvido em qualquer atividade humana é o de composição técnica, e que o que denomino conhecimento prático é somente uma forma de esoterismo que poderia ser deixada de lado, salvo pelo fato de seu alto potencial ludibriador. A soberania da razão, para o racionalista, significa a soberania da técnica.

A título de exemplo, a superioridade de uma ideologia em detrimento da tradição do pensamento reside em sua aparência de que se autocontém. Ela pode ser mais bem ensinada àqueles que possuem a mente vazia; e, se ela for ensinada a alguém que já crê em alguma coisa, o primeiro passo do professor seria levar a cabo um expurgo, garantindo que todos os preconceitos e pressuposições sejam removidos, cimentando o caminho para a base indestrutível da ignorância absoluta. Concluindo, o conhecimento técnico parece ser o único tipo de conhecimento que satisfaz o padrão de certeza que o racionalista escolheu.

O fato de que a política contemporânea se encontra amplamente infectada pelo vírus do racionalismo será rejeitado somente por aqueles que escolherem dar outro nome a essa infecção. Não somente nossos vícios políticos são de cunho racionalista, mas também nossas virtudes. Nossos projetos são, em geral, racionalistas em intenção e caráter; contudo, o mais importante é que toda nossa predisposição mental também é determinada nesses moldes

A profundidade a que chegou a invasão do ímpeto racionalista a nosso pensamento e prática política é ilustrada pela extensão com que o comportamento tradicional foi cedendo lugar à ideologia e pela proporção com que a política da destruição e da criação substituiu a da reparação, sedimentando a ideia de que tudo que fora planejado consciente e deliberadamente é preferível (justamente por isso) ao que foi sendo moldado de maneira inconsciente com o passar dos anos

Contudo, pelo menos no que diz respeito à ideia de autoridade, nada nesse campo de estudo se compara com o trabalho de Marx e Engels. A política europeia sem esses autores ainda assim teria se coberto toda pela avalanche racionalista, mas sem dúvida nenhuma que tais autores são os mais destacados artífices da política racionalista – e não é para menos, tendo em vista que suas obras atingiram uma classe que nunca imaginaram, nem em seus sonhos mais delirantes, poder se debruçar sobre o exercício de poder de fato. E é importante salientar que nenhum defeito foi encontrado na fabricação desses manuais para forjar farsas políticas por seus ávidos leitores,

Uma civilização de pioneiros é, quase inevitavelmente, uma civilização de convictos self made men. Racionalistas por circunstância e não fruto de um processo reflexivo, eles não sentiam necessidade de ser persuadidos de que o conhecimento começa em uma tabula rasa. E mais, a mente livre para eles não era um processo de faxina geral como propunha Descartes, mas sim uma dádiva de Deus todo-poderoso, como disse de certa feita Jefferson.


E por um estranho autoengano, ele atribuiu à tradição (a qual, obviamente, é eminentemente fluida) a rigidez e a dureza de caráter que pertencem na verdade à ideologia política. Isso faz, consequentemente, do racionalista um personagem perigoso e dispendioso quando no controle da coisa pública, sendo ele inclusive mais devastador não quando perde o domínio em dada situação (sua política, claro, sempre é orientada para dominar uma situação e superar crises), mas sim quando ele aparentemente obtém sucesso, uma vez que o preço que pagamos por seus logros é uma tirania cada vez mais completa dessa moda intelectual racionalista sobre o todo da vida em sociedade.

Primeiro, como eu havia interpretado, o racionalismo na política sofre de um erro claramente identificável, qual seja, o entendimento incorreto em relação à natureza do conhecimento humano, descambando para uma corrupção total da mente. Dessa forma, ele se apresenta sem poder algum para corrigir seus fracassos

Resumindo, em essência é impossível educar um racionalista, pois o único instrumento que poderia em tese educá-lo fora do racionalismo ele o desmerece como inimigo da humanidade. Tudo que um racionalista consegue fazer quando abandonado com si mesmo é substituir um projeto racionalista fracassado por um que ele espera poder concluir. A bem da verdade, é nisso em que a política atual está se degenerando: o hábito político e a tradição, os quais há pouco tempo eram de posse comum entre até os mais ferozes oponentes dentro da política inglesa, foram suplantados por uma mera predisposição mental racionalista.

Desde os primeiros dias de sua emergência, o racionalista se interessou, um tanto macabramente, pela educação. Ele tem um respeito por ‘cérebros’, uma crença inabalável em treiná-los, a determinação em encorajar a inteligência e de que no fim ela será compensada com o poder. Mas qual seria essa educação em que o racionalista acredita? Certamente não seria uma iniciação em hábitos morais e intelectuais, nem muito menos nos êxitos de sua sociedade, ou um mergulho na parceria entre presente e passado, um compartilhamento de conhecimento concreto; para o racionalista tudo isso não passa de esoterismo, portanto sem valor e ainda por cima, potencialmente danoso

O que acontece hoje é que os racionalista vêm trabalhando tão arduamente em seu projeto de drenar o líquido no qual nossos ideias morais estavam suspensos (e o derramando como se fosse inútil) que fomos deixados somente com os resíduos e os restos que nos sufocam quando tentamos mergulhar. Primeiro fazemos de tudo para solapar a autoridade dos pais (por causa de seu suposto abuso), depois vituperamos contra a escassez de boas moradias, no fim criamos substitutos que completem o trabalho de aniquilamento. É por essa razão que, dentre outras coisas que também sofrem de corrupção pela insanidade, deparamos com um espetáculo de um bando de hipócritas, no caso racionalista políticos, que pregam uma ideologia de altruísmo e serviço social a uma população da qual eles e seus antecessores fizeram de tudo para privar da única raiz viva de comportamento moral; sua oposição consiste (pasmem!) de outro grupo que quebra a cabeça com o projeto de nos livrar do racionalismo sob a inspiração de começar do zero com uma nova e fresca racionalização de nossa tradição política.”

As massas em uma democracia representativa


O decorrer da história moderna da Europeu revelou um personagem que nos acostumamos a chamar de homem massa. Seu surgimento é muitas vezes tido como o mais significativo e abrangente dentre as revoluções da era moderna. Ele é famoso por ter transformado a maneira como vivemos, nossos padrões de conduta e a forma como fazemos política. Também é reconhecido, lamentavelmente, por ter se tornado o árbitro do gosto, o ditador da política, o rei não coroado da modernidade. Desperta medo em alguns, admiração em outros, fascinação em todos. Seus números o fizeram um gigante; prolifera-se por toda parte; é tido tanto como um gafanhoto que está transformando um jardim fértil em deserto quanto o agente que carrega a esperança de uma nova e mais gloriosa civilização.

Essa experiência de individualidade provocou uma predisposição a explorar seus próprios limites, atribuindo-lhes os mais altos valores, e à procura de segurança em seu regozijo. Gozá-la acabou vindo a ser considerado o mais importante ingrediente para a felicidade. A experiência fora magnificada em uma teoria ética; fora refletida em formas de governar e ser governado, em novos direitos adquiridos e em deveres e um padrão todo novo de vida. A emergência dessa predisposição em ser um indivíduo é o evento mais destacável da história da Europa moderna.

Em poucas palavras, a condição da Europa moderna, mesmo antes no século xvi, dera origem não somente a um personagem, mas a duas figuras antagônicas: além do indivíduo, agora temos também o ‘indivíduo manqué’. E esse ‘indivíduo manqué’ não era uma relíquia das eras antigas, e sim um produto da modernidade, o resíduo da mesma dissolução dos laços comunais que haviam dado à luz o indivíduo europeu moderno.

Não se faz necessário especular acerca da combinação de debilidade, ignorância, timidez, pobreza ou azar que operaram para fabricar esse personagem; basta observar sua aparição e seus esforços para se acomodar naquele ambiente tão hostil. Ele procurava um protetor que entendesse sua situação, e ele encontrara, por assim dizer, no Estado. Já a partir do século xvi, os governos da Europa estavam sofrendo alterações, não somente em resposta às demandas da individualidade, mas também reagindo às necessidades do ‘indivíduo manqué’. O rei todo-poderosoda Reforma e seu descendente direto, o despota esclarecido do século xviii, foram invenções que estavam a serviço de fazer escolhas por aqueles que não as queriam fazer por conta própria;”

...que não passava de uma dúvida sobre suas habilidades de aguentar a pressão na luta pela sobrevivência se descambara em uma radical falta de confiança em si mesmo: o que não passava de mero prospecto ruim, se apresentara enfim como abismo; o que era o desconforto de um fracasso se transformara na miséria da culpa.

Em alguns, sem dúvida, essa situação levou à resignação; mas em outros geraram-se inveja e ressentimento. E com essas emoções uma nova predisposição surgiu: o impulso de fugir à situação impondo-a ao resto da humanidade. Do frustrado ‘indivíduo manqué’ saiu o militante ‘anti-indivíduo’, disposto a assimilar tal palavra a seu próprio caráter destronando o indivíduo e eliminando seu prestígio moral. Nenhuma promessa, ou mesmo qualquer oferta, de melhoramento pessoal poderia frear esse ‘anti-indivíduo’; ele sabia que sua individualidade era tão pobre que nada seria o bastante para salvá-la. O que o movia era unicamente a oportunidade de escapar completamente da ansiedade de ter que ser um indivíduo, além da chance de extirpar do mundo tudo o que lhe convencia de sua falta de aptidão para tal

não pelos números em si, sua conduta é chancelada pelo suporte do resto de sua espécie. Ele não pode ter amigos (porque amizade consiste na relação entre dois indivíduos), só camaradas. As ‘massas’ tal como surgem na história da Europa moderna não é composta de indivíduos; são feitas de ‘anti-indivíduos’ reunidos em uma repulsa à individualidade. Consequentemente, mesmo que um notável crescimento da população da Europa ocidental durante os últimos quatro séculos tenha sido uma condição para o sucesso com que esse personagem se impôs, ela ainda assim não era uma condição para a existência do personagem em si.
Entretanto, o ‘anti-indivíduo’ possuía sentimentos ao invés de pensamentos, impulsos no lugar de opiniões, incapacidades no lugar de paixões; estando levemente ciente de seu poder. Sendo assim, ele necessitava de líderes; a bem da verdade, o conceito moderno de líder está intimamente ligado ao ‘anti-indivíduo’, e sem ele nem caberia o uso do termo. Uma associação de indivíduos exige um governante, não havendo lugar para um líder. O ‘anti-indivíduo’ precisava de alguém para lhe dizer o que pensar; seus impulsos tinham que ser transformados em desejos, e estes em projetos; ele tinha que se fazer convencido[]

A submissão natural do homem massaera para ser por si só capaz de promover a manifestação dos líderes em questão. Ele era inquestionavelmente um instrumento para ser manuseado, e não há dúvida de que o instrumento gerou o ‘virtuoso’. Mas havia, em verdade, um personagem pronto para ocupar essa posição. Era preciso um homem que pudesse aparecer tanto como a imagem quanto como o mestre de seus seguidores; um homem que pudesse fazer escolhas mais facilmente para os outros do que para ele mesmo; um homem disposto a se importar com a vida dos outros porque lhe faltava a habilidade de conseguir cuidar de sua própria.”

Ao redor desse núcleo girava uma constelação de crenças deveras oportuna. Desde o começo, os arquitetos dessa moralidade identificaram a propriedade privada com a individualidade, e consequentemente conectaram sua abolição com a condição da circunstância humana apropriada ao homem massa. Mais adiante, chegou-se à conclusão de que seria adequado que a moralidade do ‘anti-indivíduo’ fosse radicalmente igualitária: como deveria o homem massa, cuja única marca era sua semelhança com seus companheiros e cuja salvação residia no reconhecimento de outros como meras réplicas deles mesmos,

Mas uma mudança no momentum se deu quando o ‘anti-indivíduo’ se reconheceu como o homem massae percebeu o poder que sua superioridade numérica lhe conferia. O reconhecimento de que a moralidade do ‘anti-indivíduo’ era, em primeiro lugar, a moralidade não de um setor de aspirantes, mas de uma classe bem definida e majoritária na sociedade (a classe não era necessariamente dos pobres, era de qualquer um que por algum motiva se via privado do direito de exercer a individualidade), e que em vista disso o interesse dessa classe deveria se impor sobre o resto da humanidade, surge primeiramente de forma inquestionável nas obras de Marx e Engels.

direito que ele reclamava, o direito compatível com seu caráter, era o direito de viver em um protetorado social que o libertava do fardo da autodeterminação.

Ele reclamava essa condição como um direito, e consequentemente perseguia um governo que estava disposto a provê-lo, imbuído de um poder necessário para instaurar o padrão de política com vistas ao chamado bem público’. ‘Governo popularnada mais é que uma modificação de governo parlamentardesignado para cumprir esse objetivo. E, se essa teoria for correta, governo popular’ está tão insinuado em governo parlamentarquanto os direitos apropriados ao ‘anti-indivíduo’ estão insinuados nos direitos apropriados à individualidade: eles não são complementares, mas diretamente opostos. Entretanto, o que venho chamando de governo popular’ não é uma forma concreta de governo estabelecida e praticada: é uma tendência a impor certas modificações no governo parlamentaristano intuito de convertê-lo em uma forma de governo apropriada às aspirações do homem massa’.”

O homem massa, da forma como entendo, se distingue por seu caráter, não por sua quantidade. Ele possui uma individualidade tão parca que, quando depara com uma experiência poderosa de individualidade, esta se insurge em anti-individualidade. Ele confeccionou para si uma nova moralidade, uma compreensão oportuna do ofício de governo e modificações adequadas do governo parlamentarista’. Ele não é necessariamente pobre, tampouco sente inveja só dos ricos; ele não é forçosamente ignorante, sendo mesmo muitas vezes membro da chamada intelligentsia; ele pertence a uma classe que não corresponde a nenhuma outra. Ele é reconhecido primeiramente por uma inadequação moral, não intelectual. Ele quer a ‘salvação’; e no fim será agraciado somente com o livramento de não ter que fazer escolhas por si próprio. Ele é perigoso, não devido a suas opiniões ou desejos, mesmo porque não possui nenhum dos dois; mas sim por sua submissão. Sua predisposição é outorgar ao governo poder e autoridade jamais vistos na história; ele é totalmente incapaz de diferenciar um governantede um ‘líder’. Resumindo, a predisposição em ser um ‘anti-indivíduo’ é algo a que todo o europeu tem uma propensão; o homem massa’ é somente alguém em que essa propensão é dominante.”

considerado nossa mais forte predisposição política moral e a sobrevivência do mais fraco. Um mundo onde o homem massaexercesse um poder social completoseria um mundo em que a atividade de governar fosse entendida unicamente como a imposição de uma condição essencial da circunstância humana, um mundo onde o governo populartivesse tomado o lugar do governo parlamentarista, um mundo onde os direitos ‘civis’ da individualidade tivessem sido revogados pelos direitos sociaisdos ‘anti-indivíduos”

O desejo das ‘massas’ em gozar dos produtos da individualidade alterou seu ímpeto de destruição. E a antipatia do homem massapela felicidade’ da ‘autodeterminação’ facilmente se dissolve em autocomiseração. Considerando todos os pontos principais, o indivíduo ainda aparece como a substância e o ‘anti-indivíduo’ como sua sombra.

Ser conservador é, pois, preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna. Relações familiares e lealdades têm preferência sobre o fascínio pelas alianças de momento; comprar e aumentar é menos importante do que manter, cultivar e aproveitar; a tristeza da perda é mais aguda do que a empolgação pela novidade e pela promessa. Significa viver dentro dos limites do patrimônio, usufruir dos meios possíveis à riqueza, contentar-se com a necessidade de maior perfeição que é exigida a cada um em dada circunstância. Para algumas pessoas essa postura seria fruto de uma escolha; para outras seria uma predisposição que surge naturalmente, com maior ou menor frequência, em suas preferências e aversões, sem que tenham sido escolhidas ou especificamente cultivadas.

Sempre que a estabilidade for mais proveitosa que a melhora, sempre que a certeza for mais valiosa que a especulação, sempre que a familiaridade for mais desejável que a perfeição, sempre que um erro acordado for superior a uma verdade controversa, sempre que uma doença for mais aceitável que sua cura, sempre que uma satisfação pelas expetativas for mais importante que a justiça delas, sempre que uma regra de qualquer natureza for preferível a não haver regra alguma, a predisposição a ser conservador será mais apropriada que qualquer outra

o ofício de governar é simplesmente garantir que a lei seja cumprida. Essa é uma atividade específica e limitada, facilmente degenerada quando combinada com outra qualquer

de que não somos crianças statu pupillari, mas sim adultos que não se consideram na obrigação de justificar suas preferências na hora de tomar suas próprias decisões; e de que vai além da experiência humana supor que os governantes foram dotados de uma sabedoria superior que os leva a possuir um repertório de crenças mais avançadas que lhes dê o direito de impô-lo sobre seus súditos. Em suma, se a um homem de tal temperamento for perguntado: por que devem os governos aceitar as diversas opiniões que existem hoje em prol de impor seus sonhos sobre a população?, seria suficiente responder: por que? Seus sonhos não são diferentes dos de ninguém, e, se é chato ter de ouvir os sonhos dos outros, é terrível ter de ser forçado a vivê-los também. Toleramos os maníacos, mas por que aceitaríamos ser governados por eles? Não seria (pergunta-se o conservador) possível para um governo proteger seus cidadãos contra o incômodo daqueles que gastam suas energias e suas riquezas a serviço de uma indignação menor, lutando para impô-la sobre todo o resto, não suprimindo suas atividades, mas estabelecendo um limite para a quantidade de barulho que possa ser emitido?

sempre preferirá reforçar uma lei que já possui antes de inventar uma nova; ele julgará apropriado atrasar uma modificação da lei até ficar claro que a mudança da circunstância que ela fora designada a refletir veio para ficar por um bom tempo; sempre terá suspeitas de propostas que excedam ao que a situação exige, ou governantes que demandem superpoderes para realizar grandes mudanças e cujas verbalizações estão sempre atreladas a generalidades do tipo o bem comum’ ou ‘justiça social’, e de saviours of societyque se armam de lanças e espadas e saem caçando dragões; considerará mais prudente examinar a ocasião de inovação com cuidado

No entanto, há algo mais a ser observado nesse estilo de governança(;conservador), além das restrições impostas pelas regras familiares e convenientes. Lógico que um governo não se curvará a mimos ou qualquer outra coisa além da lei;”

Um árbitro que também é jogador numa partida não é um árbitro; regras nas quais não estamos dispostos a ser conservadores não são ordens, são um convite para a desordem; a conjunção de sonho com governo se degenera em tirania.

Para muitos, vale o que Conrad denominou linha de sombra, que, quando a atravessamos, todo um mundo sólido de coisas se abre, cada uma com sua forma fixa, cada uma com seu ponto de equilíbrio, cada uma com seu preço; um mundo de fatos, não de imagens poéticas, em que o que gastamos em uma coisa não podemos mais gastar em outra; um mundo habitado por outras pessoas que não podem ser reduzidas a reflexos de nossas emoções. Quando chegarmos a esse mundo (nenhuma política social vai nos garantir essa entrada), quando apresentarmos a predisposição para tal e não tivermos mais nada de bom para pensar, aí sim estaremos qualificados a exercer a atividade política.”