O desacordo tem a ver com o que este século tem de mais característico em relação aos outros: a extraordinária amplitude do massacre de homens feito por homens, que só foi possível pela tomada do poder pelo comunismo de tipo leninista e pelo nazismo de tipo hitlerista. Esses “gêmeos heterozigotos” (Pierre Chaunu), ainda que inimigos e originários de histórias diferentes, têm vários traços em comum. Eles se colocam como objetivo chegar a uma sociedade perfeita, destruindo os elementos negativos que se opõem a ela. Eles pretendem, ser filantrópicos, pois querem, um deles, o bem de toda a humanidade, o outro, o do povo alemão, e esse ideal suscitou adesões entusiásticas e atos heróicos. Mas o que os aproxima mais é que ambos se dão o direito — e mesmo o dever — de matar, e o fazem com métodos que se assemelham, numa escala desconhecida na história.
A dificuldade decorre do fato de que, para responder à segunda questão, é preciso mudar de nível de análise. Pode-se, de fato, comparar o comunismo com o nazismo como duas espécies do mesmo gênero, o gênero ideológico. A sedução, a natureza e o modo de seu poder, o tipo de seu crime, vinculam-se à formação mental de que eles dependem inteiramente: a ideologia. Eu entendo por essa palavra uma doutrina que promete, por meio da conversão, uma salvação temporal, que se pretende conforme a uma ordem cósmica decifrada sistematicamente em sua evolução, que impõe uma prática política que visa a transformar radicalmente a sociedade.
O relatório de Kruschev não expressa o menor arrependimento pelas vítimas não-comunistas do comunismo. O único crime verdadeiro do sistema stalinista, e que o encheu de indignação, é o de ter assassinado, em grande escala, comunistas fiéis à causa. No entanto, essa confissão tão incompleta introduziu um senão na lógica rígida da ideologia e provocou uma fissura na muralha que envolvia o segredo. Os crimes contra os comunistas só eram verdadeiramente condenáveis, segundo o secretário-geral, na medida em que eles prejudicavam o projeto e enfraqueciam o próprio poder comunista. Mas depois do relatório perguntava-se sobre os crimes cometidos pelos comunistas. O sistema se tornou objeto de um questionamento geral, de uma investigação a partir de uma suspeita legítima impossível de ser detida. A investigação se desenvolveu, ainda que debilmente e de forma descontínua, porque o poder comunista manteve-se ainda durante cerca de trinta anos, período quase tão longo quanto aquele que o separava de seu nascimento. Durante todo esse tempo, ele negou absolutamente, ao mesmo tempo que procedia ao lento desmantelamento do sistema dos campos. O arquipélago do Gulag (1974) teve um efeito reprodutor contra a falsidade da mentira. Mas aquele era apenas um texto: faltava o que os romances policiais ingleses chamam de “the evidence of the corpse”, a prova do cadáver. Ninguém no mundo tinha visto ou tocado os campos comunistas, senão os raros sobreviventes. As valas comuns do Camboja foram a exceção. Apesar de tudo, no momento da queda pode-se dizer que o segredo tinha sido revelado - apesar de que a continuidade da negação no que se refere ao comunismo continua a ser muito mais forte do que a que protege o nazismo.
A expropriação é a primeira medida do poder comunista. Ela procede da definição do comunismo de que o mal social tem raízes na propriedade privada. A dos “meios de produção” é então imediata. Mas, como é preciso arrancar do povo a idéia de propriedade e submetê-lo completamente ao novo poder, a expropriação de casas, contas bancárias, terra, gado é uma conseqüência lógica. Aos poucos, as pessoas foram ficando apenas com pouco mais que suas roupas e móveis.
Sempre houve ricos nos países comunistas, mas sem que se possa dizer que fossem proprietários. Eles eram ou proprietários “ilegais” de bens escassos, ou privilegiados que, em recompensa de uma fidelidade política e em virtude de sua posição no sistema, gozavam de certas vantagens. O direito, estando ligado à propriedade privada, desaparece subitamente: só restam decisões “jurídicas” do partido. Na Alemanha nazista, a expropriação e a proscrição só afetaram inicialmente os judeus. O direito e a propriedade subsistiram para os “arianos”, mas espremidos, residuais e destinados a desaparecer na lógica do sistema.
A fome, diferentemente da penúria, que é constante, é um espectro reiterado que acompanha a história dos regimes comunistas. Ela está presente na URSS, na China, na Etiópia, na Coréia. A fome é, na maior parte do tempo, uma conseqüência da política comunista. É da essência dessa política estender seu controle à totalidade de seus súditos. Não é tolerável deixar os camponeses se organizarem espontaneamente à margem do poder. Ao expropriá-los, fazendo-os entrar nos quadros artificiais do kolkoz, da Comuna Popular, provoca-se inevitavelmente uma crise de subsistência. Não se pode, no entanto, dizer que o poder deseja a fome como tal, mas é o preço que ele aceita pagar para atingir seus objetivos políticos e ideológicos. No Cazaquistão, a população caiu pela metade. Entretanto, houve casos em que a fome foi desejada e organizada com um fim preciso de extermínio. Foi o que aconteceu na Ucrânia, durante os anos 1932-1933. O objetivo era o de terminar não com uma resistência qualquer do campesinato, porque a coletivização já a quebrara, mas com a existência nacional do povo ucraniano. Falou-se a esse respeito e, com razão, de genocídio.
Consentida como meio ou desejada como fim, a fome foi o procedimento mais mortífero da destruição comunista das pessoas. Ela responde por mais da metade dos mortos imputáveis ao sistema na URSS, e por três quartos, talvez, na China
Essa ilusão se dissipa caso se queira olhar bem o genuíno funcionamento intelectual dos dirigentes nazistas e comunistas. Ele é inteiramente dominado por um sistema de interpretação do mundo de uma extraordinária indigência. Um combate dualista é levado adiante entre classes ou raças. A definição dessas classes ou dessas raças só tem sentido no e pelo sistema, se bem que o que pode ter objetivo na noção de classe ou de raça perde-se de vista. Essas noções loucas explicam a natureza do combate, justificam-no, guiam-no no espírito da ideologia a ação dos adversários e dos aliados. Pode haver ardis e astúcias nos meios utilizados para atingir o fim e, de fato, o comunismo com Lenin, Stalin, Mao Ho Chi Minh beneficiou-se de atores mais competentes do que Hitler: a lógica do conjunto do sistema permanece absurda; seu fim, inatingível. O estado psíquico do militante distingue-se pelo investimento fanático no sistema. A visão central reorganiza todo o campo intelectual e perceptivo, até na periferia. A linguagem transforma-se. Ela não serve mais para comunicar ou expressar, e sim para mascarar a solução de continuidade entre o sistema e a realidade. Assume o papel mágico de sujeitar a realidade à visão do mundo; é uma linguagem litúrgica, em que cada fórmula indica a adesão do locutor ao sistema e intimida o interlocutor a aderir. As palavras reveIadoras são, então, ameaças e figuras de um poder.
Não se pode permanecer inteligente sob a ideologia. O nazismo seduziu alguns grandes espíritos: Heidegger, Carl Schmitt. Isso porque eles projetavam sobre o nazismo pensamentos próprios que lhe eram estranhos, um anti-modernismo profundo, um antidemocratismo profundo, um nacionalismo transformado em metafísica, tudo que o nazismo parecia ter assumido, salvo o que produzia seu valor na vida intelectual desses filósofos, o pensamento, a profundidade, a metafísica. Eles também cediam à ilusão da genealogia.
O marxismo-leninismo só recrutou espíritos de segundo escalão, um Lukács, por exemplo: eles não tardaram a perder seu talento. Os partidos comunistas podiam se vangloriar de contar com adesões ilustres - Aragon, Brecht, Picasso, Langevin, Neruda: eles tinham o cuidado de mantê-los à margem para isolá-los numa adesão de acaso, de humor, de interesse, de circunstância. Porém, apesar do caráter superficial dessa adesão, a pintura de Picasso (ver os Massacres da Coréia) e a poesia de Neruda e de Aragon não deixaram de sofrer os efeitos. Ela pode subsistir artisticamente em um registro de provocação. A adesão à ideologia dos espíritos superiores produz-se a favor de uma confluência aleatória de paixões diversas cuja natureza é externa à ideologia. Mas, aproximando- se de seu cerne, tais paixões se debilitam, não restando às vezes senão um resíduo de inépcia.
O homem nazista e comunista oferece-se ao exame clínico do psiquiatra. Ele parece fechado, desligado do real, capaz de argumentar indefinidamente em círculo com seu interlocutor, obscurecido, persuadido, no entanto, de ser racional. É por isso que os psiquiatras associaram esse estado de delírio crônico sistematizado à esquizofrenia, à paranóia. Se nos aprofundamos no exame, vemos que esta caracterização permanece metafórica. O sinal mais evidente de esta loucura ser artificial é que ela é reversível: quando a pressão cessa e as circunstâncias mudam, nós saímos dela imediatamente, como de um sonho. Mas é um sonho desperto, que não bloqueia a motricidade e mantém uma certa coerência de caráter racional. Fora da zona atingida, que, no homem sadio, é a parte superior do espírito, aquela que elabora a religião, a filosofia, as “idéias diretrizes da razão”, diria Kant, as funções do entendimento parecem intactas, mas polarizadas e sujeitas ao lado delirante. De tal modo que, quando despertamos, a cabeça está vazia, a aprendizagem da vida e do saber deve ser completamente retomada. A Alemanha, que tinha sido a Atenas da Europa durante um século, despertou embrutecida por doze anos de nazismo. O que dizer da Rússia, bem mais sistematicamente submetida durante setenta anos à pedagogia do absurdo, e cujas bases intelectuais eram menos estabelecidas e mais frágeis?
Essas doenças mentais artificiais são também epidêmicas e contagiosas. Elas foram comparadas à difusão repentina da peste ou da gripe. Formalmente, a nazificação da Alemanha, em 1933, e a Revolução Cultural chinesa desenvolveram-se de fato como uma espécie de doença contagiosa. Esperando sabermos mais sobre essas pandemias psíquicas, atribuamos a essas comparações um valor simplesmente metafórico.
A inépcia é o cenário de fundo da destruição moral. Ela é sua condição. O desajustamento moral da consciência natural e comum só pode existir se a concepção do mundo, a relação com a realidade, forem previamente perturbadas. Se essa cegueira é uma circunstância atenuante ou se ela é uma parte integrante do mal, eu não discutirei aqui. Ela não suspende o julgamento moral.
O que assinala a nossos olhos o demoníaco é que estes atos foram realizados em nome de um bem, sob a cobertura de uma moral. A destruição moral tem como instrumento uma falsificação do bem tal que o criminoso, em uma medida impossível de precisar, possa manter a distância a consciência de que pratica o mal.
O homem novo é aquele que faz sua a nova moral de dedicação absoluta aos fins, que se dedica a expulsar de si mesmo os restos da velha moral, aquela que os “inimigos de classe” propagam para perpetuar o seu domínio. Lenin canonizou a ética comunista, e Trotski escreveu um pequeno livro cujo título já diz tudo: A moral deles e a nossa.
O fato assustador é que essa ruptura moral não é percebida por todos de fora desse meio revolucionário. De fato, para descrever a nova moral, o comunismo serve-se de palavras da velha: justiça, igualdade, liberdade... E fato que o mundo que ele se apresta a destruir está repleto de injustiça e de opressão. Os homens de bem não podem deixar de aceitar que os comunistas denunciam esses males com extremo vigor. Eles concordam que a justiça distributiva não é respeitada. Guiando-se pela idéia de justiça, o homem de bem busca promover uma melhor distribuição das riquezas. Para o comunista, a idéia de justiça não consiste numa divisão “justa”, e sim no estabelecimento do socialismo, na supressão da propriedade privada, anulando assim todo tipo de divisão, a própria divisão e, enfim, o direito das partes. Os comunistas dedicam-se a fazer nascer a consciência da desigualdade.
Eu chamo de moral natural ou comum aquela à qual se referem os sábios da Antiguidade, e também os da China, da índia ou da África. No mundo constituído pela Bíblia, essa moral é resumida na segunda tábua dos mandamentos de Moisés. A ética comunista opõe-se a ela de forma frontal e muito consciente. Ela se propõe a destruir a propriedade e, com ela, o direito e a liberdade que se vinculam a ela, e reformar a ordem familiar. Ela se dá o direito de todos os meios de mentira e de violência para derrubar a velha ordem e fazer surgir a nova. Ela transgride abertamente, em seu princípio, o quinto mandamento (“honrarás pai e mãe”), o sexto (“não matarás”), o sétimo (“não cometerás adultério”), o oitavo (“não roubarás”), o nono (“não darás falso testemunho contra teu próximo”) e o décimo (“não cobiçarás a mulher do próximo”). Não é absolutamente necessário crer na revelação bíblica para aceitar o espírito desses preceitos.
O comunismo concebe um outro universo e vincula a ele sua moral. É por isso que ele recusa não só os preceitos, mas também seu fundamento, o mundo natural. Dizíamos que a moral comunista baseia-se na natureza e na história; é falso. Baseia-se numa supernatureza que não existe e numa História sem verdade.
“O regime soviético”, escreveu Raymond Aron, em Democracia e totalitarismo,2 “originou-se de uma vontade revolucionária inspirada em um ideal humanitário. O objetivo era o de criar o regime mais humano que a História já tivesse conhecido, o primeiro regime em que todos os homens poderiam ter acesso à humanidade, em que as classes teriam desaparecido, em que a homogeneidade da sociedade permitiria o reconhecimento recíproco dos cidadãos. Mas esse movimento tendeu para um fim absoluto, não hesitando diante de qualquer meio, porque, segundo a doutrina, apenas a violência poderia criar essa sociedade absolutamente boa, e o proletariado estava engajado numa guerra impiedosa contra o capitalismo. Dessa combinação entre um fim último e uma técnica impiedosa surgiram as diferentes fases do regime soviético.”
Não é o proletariado que faz a guerra ao capitalismo, é a seita ideológica que fala e age em seu nome. Enfim, o capitalismo só existe por oposição a um socialismo não existente senão na ideologia, e, em conseqüência, o conceito de capitalismo é inadequado para descrever a realidade que deve ser derrubada. O objetivo não é sublime: ele assume as cores do sublime. O meio, que é matar, se toma o único fim possível.
No centro se encontra o partido, e, no partido, seu círculo dirigente. Nos primeiros tempos do poder, ele ainda está sob o domínio total da ideologia. Nesse momento é que ele se dedica a eliminar “o inimigo de classe”. Em uma intoxicação absoluta da consciência moral, ele destrói em nome da utopia categorias inteiras de pessoas. Uma olhada retrospectiva mostra que, nos casos russo, coreano, chinês, romeno, polonês, cambojano, esta sangria inicial foi uma das mais importantes da história desses regimes: às vezes da ordem de 10% da população, ou até mais do que isso. Quando parece que o sonho utópico já não se realizará, que a dizimação propiciatória não serviu para nada, observa- se um deslizamento da utopia para a simples conservação do poder. O inimigo objetivo estando já exterminado, é preciso cuidado para que não se reconstitua, até mesmo para que não reapareça nas fileiras do próprio partido. É o momento de um segundo terror, que parece absurdo porque não responde a uma resistência social e política, e visa a um controle total de todos os homens e de todos os pensamentos. O medo então se torna universal, ele se alastra no próprio partido, onde cada membro se sente ameaçado. Todo mundo denuncia todo mundo; todo mundo trai em cadeia.
Depois vem o terceiro estágio, o partido previne-se contra o expurgo permanente. Ele se contenta com uma gestão rotineira do poder e de sua segurança. Ele não crê mais na ideologia, mas continua a falar sua linguagem, e cuida para que essa linguagem, que ele sabe que é mentirosa, seja a única falada, pois ela é o sinal de sua dominação. Ele acumula os privilégios e as vantagens; transforma-se em casta.
Ele entra em uma corrupção generalizada. Entre o povo, não se comparam mais seus membros a lobos, mas a porcos. A periferia é constituída pelo restante da população. Na sua totalidade, de fato, esta é imediatamente convocada e mobilizada para a construção do socialismo. Ainda na sua totalidade ela sofre a ameaça, ela está exposta à mentira, ela é solicitada a participar do crime.
Ela está, antes de tudo, fechada. Todo governo comunista fecha as fronteiras, esse é um de seus primeiros atos. Os nazistas, até 1939, autorizavam as partidas, a troco de resgate. A “pureza” da Alemanha ganhava com isso. Mas jamais os comunistas. Eles têm necessidade do fechamento absoluto das fronteiras para proteger o segredo de suas matanças, de seu fracasso; mas, sobretudo, porque o país supostamente se tomou uma vasta escola em que todos devem receber a educação que extirpará o espírito do capitalismo e filtrará, em seu lugar, o espírito socialista. O segundo passo é controlar a informação. A população não deve saber o que se passa fora do campo socialista. Ela não deve tampouco saber o que se passa dentro. Ela não deve conhecer seu passado. Ela não deve conhecer seu presente: somente seu futuro radioso.
O terceiro é substituir a realidade por uma pseudo-realidade. Todo um corpo especializado no falso produz falsos jornalistas, falsos historiadores, uma falsa literatura, uma falsa arte que finge refletir fotograficamente uma realidade fictícia. Uma falsa economia produz estatísticas imaginárias. Acontece às vezes que as necessidades da cenografia chegam à adoção de medidas de estilo nazista. Assim, na URSS, os mutilados de guerra e do trabalho eram afastados da vista do público, transportados para asilos longínquos onde eles não chamavam mais atenção. Na Coréia, recordemos, são os anões, cuja “raça” deve desaparecer, que são deportados e impedidos de procriar. A construção dessa cenografia ocupa milhões de homens. Para que serve isso? Para provar que o socialismo não só é possível, mas que se constrói, se afirma, mais do que isso, que já está realizado: que existe uma sociedade nova, livre, auto- regulamentada, em que crescem os “homens novos” que pensam e agem espontaneamente conforme os cânones da realidade-ficção. O instrumento mais poderoso do poder é a confecção de um novo idioma em que as palavras assumem um sentido diferente do habitual. Sua elocução, seu vocabulário especial lhe dão o valor de uma linguagem litúrgica: ela denota a transcendência do socialismo. Ela assinala a onipotência do partido. Seu emprego pelo povo é a marca imediatamente visível de sua servidão.
No começo, uma parte importante da população recebe de boa-fé a pedagogia da mentira. Ela entra na nova moral com seu patrimônio moral antigo. Ela ama os dirigentes que lhe prometem a felicidade, ela crê que é feliz. Ela pensa viver na justiça. Ela detesta os inimigos do socialismo, ela os denuncia, aprova que eles sejam expropriados, que sejam mortos. Ela apóia seu extermínio com dureza. Ela participa do crime sem se dar conta. Ao mesmo tempo, ela se embrutece por ignorância, desinformação, raciocínios falsos. Ela perde suas referências intelectuais e suas referências morais.
A incapacidade de distinguir o comunismo do ideal moral comum faz com que, quando seu sentimento de justiça é ferido, ela atribua o abuso ao inimigo externo. Até a queda do comunismo, na Rússia, era freqüente os homens que sofriam maus-tratos pelos policiais ou pelos militantes os tratarem de “fascistas”. Não passava chamar-lhes por seu verdadeiro nome – comunistas.
E a vida, na cenografia socialista, em vez de se tornar “mais alegre, mais feliz”, como dizia Stalin, enfaticamente, em pleno “grande expurgo”, se torna mais sinistra, mais lúgubre. O medo invade tudo e é preciso sobreviver. O aviltamento moral, até ali inconsciente, penetra na consciência. O povo socialista, que fazia o mal acreditando que fazia o bem, sabe agora que o faz. Ele denuncia, rouba, se humilha, se toma mau, covarde e tem vergonha. O regime comunista não esconde seus crimes, como fez o nazismo; ele os proclama, convida a população a se associar a eles. Cada condenação é seguida de uma reunião de aprovação. O acusado é publicamente renegado por seus camaradas, sua mulher, seus filhos. Estes se unem à cerimônia por medo, por interesse. O stakhanovismo entusiasta dos primeiros tempos - se ele chegou a existir foi apenas como elemento cenográfico - é revelado no Homo sovieticus como um indolente, servil, imbecil. As mulheres sentem horror pelos homens. As crianças por seus pais, e sentem que se tomam aos poucos como eles.
O último estágio nos é descrito pelos escritores do fim do sovietismo, Erofeev, Zinoviev. Os sentimentos mais difundidos são o desespero e a repugnância de si mesmo. Resta aproveitar-se dos prazeres específicos que esse regime proporciona: a irresponsabilidade, a preguiça, a passividade vegetativa. Não vale mais a pena praticar o duplo pensamento, procura-se na verdade não pensar em nada. As pessoas se fecham sobre si mesmas. O sentimentalismo choroso, a self-pity são uma maneira, como fazem os bêbados, de tomar os outros testemunhas de sua degradação.
Em seguida, porque a confusão permanece insuperável entre a moral comum e a moral comunista, esta se escondendo atrás daquela, tomando-se parasita dela, gangrenando-a, fazendo dela o instrumento de seu contágio. Um exemplo recente: nas discussões que se seguiram à publicação do Livro Negro, um editorialista do L'Humanité declarou à televisão que os oitenta milhões de mortos não manchavam em nada o ideal comunista. Eles representavam apenas um lamentável desvio.
Depois de Auschwitz, continuou ele, não se pode ser mais nazista; mas depois dos campos soviéticos, pode-se continuar sendo comunista. Esse homem que falava com consciência não se dava de forma alguma conta de que ele acabava de formular sua mais fatal condenação. Ele não percebia que a idéia comunista tinha pervertido de tal forma o princípio de realidade e o princípio moral, que ela não poderia de fato sobreviver a oitenta milhões de cadáveres, ao passo que a idéia nazista tinha sucumbido sob os seus. Acreditando falar como um homem muito honesto, idealista e intransigente, ele tinha pronunciado uma palavra monstruosa.
O comunismo é mais perverso que o nazismo porque ele não pede ao homem que atue conscientemente como um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a terra o mal. Cada experiência comunista é recomeçada na inocência.
Antes de tomar o poder e, para tomá-lo, os partidos comunistas e os nazistas utilizam todos os meios da política. Eles se instalam no jogo político, apesar de eles mesmos, segundo seus próprios critérios e sua disciplina interna, se colocarem fora do jogo. Por exemplo, quando o partido bolchevique reivindica a terra para os camponeses e a paz imediata, não é para se contentar com o êxito dessas duas reivindicações. Trata-se de colocar os camponeses e os soldados do seu lado a fim de lançar o processo revolucionário. Feita a revolução, a terra é expropriada dos camponeses e a guerra está ativamente preparada sem que o partido veja nisso a menor contradição. Nenhuma ação termina no objetivo que ela atinge. Ela é englobada em um movimento indefinido e só existe para propiciar uma outra ação situada para além do limite proclamado.
Uma vez no poder, a política do partido fica mais do que nunca voltada para a destruição do político. As formas orgânicas da vida social, a família (se o poder tem a força para isso, mas ela resiste por todos os lados, não sem se desgastar e se degradar), as classes, os grupos de interesse, os corpos constituídos são suprimidos. As pessoas, a partir de agora privadas de todo direito de associação, de agregação espontânea, de representação, reduzidas à condição de átomos, são colocadas num novo enquadramento. Este enquadramento se modela sobre aquele que deveria existir se o socialismo existisse como sociedade. Ele assume então o nome de sovietes, de uniões, de comunas.
Como o socialismo só existe virtualmente, esse enquadramento só existe como coação. E a oportunidade política que decide se os novos quadros devem expressar por seu nome o socialismo virtual ou, bem se lhe convém, deixar-lhes seu antigo nome para fazer crer que o velho mundo ainda é, de alguma maneira, atual: lhes darão o nome de sindicatos, de academias, de parlamentos, de cooperativas, a homonímia podendo ser “explorada politicamente”. Quantas delegações de parlamentares ou prefeituras ocidentais são assim enganadas porque acreditam ter sido recebidas por parlamentares e vereadores, e não por funcionários do partido que tinham se apropriado desses nomes!
Os dois regimes se referem a um passado mítico sobre o qual se modela um futuro imaginário. Antigamente, houve o tempo dos arianos, os melhores segundo a natureza: amanhã os germanos reinarão novamente e, sobre eles, os mais puros. O comunismo insiste menos na restauração do passado - a comuna primitiva - do que sobre sua reprodução a um “nível superior”. É preciso então dar um espaço maior à velha noção de progresso, herdada do Iluminismo e dramatizada pelo Romantismo. A idéia de Marx, segundo as palavras de Raymond Aron, era ir de Rousseau a Rousseau, passando por Saint-Simon, isto é, pelo progresso técnico e industrial.
A tomada do poder por um partido comunista é preparada por uma luta puramente política no seio de uma sociedade normalmente política. E lá que ele treina nas táticas que coloca em prática depois da vitória do partido. Aquela, por exemplo, chamada “tática do salame”, que consiste em fazer alianças com forças políticas não-comunistas, de maneira que force o aliado a participar na eliminação dos adversários: primeiro, a “extrema direita”, com a ajuda de toda a esquerda; depois, a fração moderada dessa esquerda e, assim, sucessivamente, até a última “fatia”, que deve se submeter e “fundir-se” sob pena de ser, por sua vez, eliminada. Esse profissionalismo, que inclui a astúcia, a paciência, a racionalidade, quanto ao objetivo buscado, faz a superioridade do leninismo. Mas se trata apenas de destruição, e a construção é impossível porque esse objetivo é insensato.
Tomado uma espécie de ditador, mas sem poder tomar consciência disso, Lenin continuava a pôr sobre suas situações mais instáveis suas categorias fantasmáticas e, em conseqüência, tomava suas decisões. A prática comunista não segue uma inspiração estética, mas procede a cada instante de uma deliberação “científica”. A falsa ciência copia da verdadeira seu caráter demonstrativo e seus procedimentos lógicos. E apenas toma mais louca a empresa, mais implacável a decisão e mais difícil a correção, pois a falsa ciência, que não é empírica, impede que se constatem os resultados da experiência.
Pouco a pouco, a destruição se amplia e se toma total, igualando-se, para retomar a fórmula de Bakunin, à vontade de criação. Ela seguiu na Rússia seis etapas. Primeiro, a destruição do adversário político: órgãos do governo, da antiga administração. Isso se fez num piscar de olhos, logo em seguida ao putsch de outubro de 1917. Depois, a destruição das resistências sociais, reais ou potenciais: corpos organizados, partidos, exército, sindicatos, cooperativas; corpos culturais, universidade, escola, academia, igreja, editora, imprensa.
No entanto, o partido se dá conta de que o socialismo nem sempre existiu como sociedade livre e auto-regulada, e que a coerção é, mais do que nunca, necessária para fazê-lo surgir. Mas a doutrina prevê que há apenas duas realidades - o socialismo e o capitalismo. É nesse momento, então, que a realidade se confunde com o capitalismo, e que é preciso, terceira etapa, destruir toda a realidade: a aldeia, a família, os restos da educação burguesa, a língua russa. É preciso estender o controle sobre cada indivíduo tornado solitário e desarmado pela destruição de seu sistema de vida, levá-lo para um novo sistema em que ele será reeducado, recondicionado. Eliminar, enfim, os inimigos escondidos.
O fracasso da construção do socialismo no interior vem do ambiente externo hostil. Pela sua simples existência, ele é uma ameaça, quaisquer que sejam as cores desse espectro hostil: democracia burguesa, socialdemocracia, fascismo. E preciso, então, quarta etapa, criar em cada país organizações de tipo bolchevique (os partidos comunistas), com um organismo central para coordená-los e adaptá-los ao modelo central, o Komintem. Quando, valendo-se das circunstâncias, o comunismo pôde se estender, as novas zonas agregadas ao “campo socialista” conheceram etapas análogas de destruição.
Porém, em toda a extensão do campo, o partido (pela voz de Stalin) constata que “o capitalismo está mais forte que nunca”. Ele se infiltra e se estende no próprio partido, que perde a sua virtude. Cabe então ao líder do partido, e apenas a ele, destruir o partido (quinta etapa), para recriar um outro com seus restos. Essa perigosa operação requer uma promoção do carisma do líder que o assemelha ao Führer nazista. Uma vez concentrado em sua pessoa o espírito da história, como o outro espírito da “raça”, ele pode se permitir, em um esplêndido isolamento e em uma relação “direta” com as massas, liquidar o seu carrasco coletivo. Stalin fez isso uma vez, não sem imitar Hitler e a sua “noite dos longos punhais”. Ele se preparava para fazê-lo uma segunda vez (e também deportar o conjunto dos judeus) quando a morte o surpreendeu. Mao Zedong fez duas vezes, no momento do “grande salto para a frente” e, depois, mais nitidamente ainda, na Revolução Cultural. Usura e autodestruição.
Na lógica pura dos dois sistemas levada ao limite está contido o extermínio de toda a população da Terra. Mas essa lógica não se aplica e não pode se aplicar até o fim.
O princípio do comunismo é o de subordinar tudo à tomada e conservação do poder, pois é ao poder que cabe a responsabilidade de realizar o projeto. Para conservar o poder, é preciso poupar o que é necessário à subsistência.
As táticas colocadas em prática em tempos dramáticos só servem para isso. Brejnev apodrece lentamente na direção máxima. O partido se corrompe: ele não se dedica mais aos objetivos do comunismo, mas quer usufruir do poder e desfrutar das riquezas. Éle sai da irrealidade e entra na realidade devastada por sua ação, onde só encontra, em abundância, mercadorias vulgares, que nem a arte consegue embelezar, como a vodca, as datchas e as grandes limusines. Quanto ao povo, este se atola na porção da realidade que lhe foi sempre concedida, se vira como pode, se desinteressa de um regime que não lhe oferece mais a consolação da queda dos poderosos e a oportunidade de substituí-los. A degradação geral chega a um limite.
Quando um piparote aleatório faz desabar o castelo de cartas, que poderia ter desabado muito antes ou muito depois, descobre-se uma paisagem pós-comunista: mafiosa e semi- indolente, esgotada em sua energia, até para se recordar.
Apenas uma pequena minoria acredita hoje na existência dos mandamentos divinos. Se ela ainda acredita nisso - como acreditavam muitos judeus e cristãos que mais tarde se tornaram - deveria ver no primeiro piscar de olhos a contradição entre o progresso de que o homem assume a direção e a lição bíblica. O conceito de progresso, entendido no sentido de uma transformação em profundidade do ser humano, sob a ação da história ou de uma vontade político-histórica, não pode ser aceito, pois ele faz depender da ação política uma transformação que, segundo a Bíblia, só se deve a uma graça divina. Quando o que só é possível pela ação divina se toma o objetivo da ação humana, esta visa realizar o impossível.
A ação violenta contra a natureza fracassa e logo se transforma em destruição da natureza e, com ela, do humano. Pelágio pensava que, numa certa medida, o homem poderia salvar a si próprio, pela força de vontade e de ascese. Santo Agostinho estimava que o pelagiano se oprimia sem com isso melhorar. Assim fazia o “herói positivo” da lenda bolchevique.
De fato, ele piorava, pois o pelagiano pensava atingir a virtude, no sentido comum do termo, e o herói positivo uma virtude definida pela ideologia, isto é, um vício. Além disso, o velho pelagiano não visava, da mesma forma que a filosofia antiga, senão a um progresso individual. O novo é coletivizado. A transferência ao poder político da idéia pelagiana é mais destruidora, pois é o outro, enfim, são todos os outros, que serão corrigidos pela educação, se necessário pela reeducação, em um muro cercado por arame farpado.
Biblismo” comunista
Se o nazismo oferece uma farsa do Antigo Testamento, o comunismo oferece ao mesmo tempo a do Antigo e do Novo. A perversa imitatio do judaísmo e do cristianismo, que faz parte do seu “charme”, é um fato tão reconhecido que bastam algumas palavras para caracterizá-lo. Esta ideologia propõe um mediador e um redentor. O “proletariado”, o “explorado”.
O nazismo se concentrou na versão marcionita do gnosticismo. Ele aceitou formal e provisoriamente um outro Deus diferente do de Abraão. Ele perseguiu os cristãos fiéis. Ele tratou de se enriquecer com elementos tomados do esoterismo e do ocultismo do final do século. Ele quis despertar o neopaganismo dos velhos deuses alemães, fazendo assim injúrias por essa outra contrafação ao que a mitologia alemã tinha de honroso, de belo e de comum com aquela de Homero. Nos dois sistemas de salvação, comunista e nazista, é difícil distinguir, no ódio que confunde judeus e cristãos, se os primeiros são detestados por estarem na origem dos segundos ou os segundos por serem os filhos dos primeiros. Qualquer que seja a ordem seguida, a perseguição atinge um depois do outro.
A terceira heresia é o milenarismo. Em seus efeitos históricos, ele conflui com o messianismo. Ele é uma expectativa de mudança radical no interior da história. O messianismo bíblico espera o advento de uma figura real capaz de restaurar uma aliança de paz em Israel e nas Nações. O milenarismo primitivo cristão acreditava que Cristo retornaria à Terra para reinar gloriosamente mil anos com os justos ressuscitados. Essas doutrinas sofreram no século XX derivações seculares. Foi assim que a idéia messiânica contaminou as formas mais extremas do nacionalismo: o povo alemão, o povo russo, tinham esperanças da redenção final da história humana.
O milenarismo é uma impaciência de fazer advir o Reino de Deus e uma vontade de tomar em suas mãos esse acontecimento. Ele pode ser compreendido como um tipo de pelagianismo paroxístico, coletivizado e politizado. A história moderna é abalada por essas crises heróicas: os taboritas da Boêmia, os anabatistas de Münster, a ala extremista da revolução inglesa, Sabbatai Zvi. Elas são mais sangrentas quando, livres da idéia de Deus, visam à instauração de um regnum hominis. É raro que, valendo-se dessas crises, a separação entre judeus e cristãos não seja envenenada por aqueles mesmos que atacavam suas respectivas religiões, das quais não subsiste mais nenhum sinal senão o ódio recíproco.
O comunismo cresceu graças a uma maciça apostasia dos cristãos. Não é certo que esta apostasia, e menos ainda os compromissos e as cumplicidades de gravidade variável, sejam considerados como verdadeiros culpados. Eles são, em geral, considerados pecados venais e freqüentemente louváveis pelas intenções generosas. A razão simples é que os cristãos não foram ainda totalmente purgados das idéias comunistas misturadas no seu espírito com as idéias humanitárias e introduzidas por estas últimas entre os fiéis e no clero. Sob formas dissimuladas e inconscientes, através das tendências heréticas já citadas, elas são sempre ativas. Mesmo atualmente ouve-se falar de uma “terceira via” entre capitalismo e socialismo. E porque não se tomou ainda consciência de que subsumar nosso mundo sob o conceito de “capitalismo” significa que já se entrou no mundo dicotômico da ideologia, da qual, no entanto, se crê estar muito distante. A sobrevivência desses hábitos de pensamento é uma razão a mais para o esquecimento. De fato, não se sabe ainda claramente qual parte do mundo cristão seria necessário recordar.
O nazismo chacinou muitos cristãos: só na Polônia, três milhões, tantos quantos os judeus. Ele estava determinado a aniquilar a Igreja rapidamente. No entanto, a realidade é que a memória cristã do nazismo não se concentrou no massacre geral nem nas perseguições à Igreja, mas muito especificamente na sorte dos judeus e na responsabilidade das Igrejas no conjunto dos acontecimentos referentes à solução final. Profundamente atacada nesse ponto, a Igreja católica fez valer seus argumentos. O padre Blet, S. J., historiador cuja competência é notória e reconhecida por seus pares, reuniu- os recentemente em uma obra documentada sobre os arquivos do Vaticano5: de todos os corpos constituídos subjugados pelo nazismo, afirma ele, a Igreja foi o que salvou mais judeus. O padre Blet avalia seu número em 800 mil. A encíclica Mit Brennender Sorge (março de 1937) condena expressamente o racismo e as diversas idolatrias da raça, do sangue, da nação. O silêncio6 de que é acusado Pio XII pode ser explicado pela prudência e pela preocupação por uma eficácia máxima; por exemplo, para não suscitar reações nazistas ainda mais mortíferas, como tinha acontecido nos Países Baixos quando os bispos tinham elevado a voz em protesto; salvar um circuito eclesiástico e um esquema diplomático que permitiria agir debilmente na Alemanha, com base na concordata, e mais fortemente nos países satélites mas que não tinham ainda sido ocupados, como a Hungria ou a Eslováquia; não enfraquecer sistematicamente a Alemanha face à ameaça soviética, que o Papa considerava, com razão, como mais perigosa ainda a longo prazo para a humanidade.
Há nisso uma regra geral. Quando estamos diante de um regime ideológico, a primeira coisa a fazer e a linha que se deve ter absolutamente até o fim é a de recusar, sem discussão, a descrição da realidade que ele propõe. Se colocamos o dedo na engrenagem e nos recordamos que há nesta descrição uma “parte de verdade”, se aceitamos, por exemplo, que existem arianos e não-arianos e, então, que existe um “problema judeu”, estamos perdidos e a vontade só obedece a uma inteligência falseada. Só resta suplicar aos “arianos” para que resolvam “humanamente” esse “problema”. Na ideologia, a “parte de verdade” que concentra o poder de sedução é o próprio centro da falsificação e o que há de mais falso. A regra vale para toda ideologia e, particularmente, para a ideologia comunista. Desde o momento que se admitia uma descrição da realidade tal como ela era dividida entre o socialismo e o capitalismo, nada mais restava senão suplicar simetricamente aos dois “campos” para obedecerem aos princípios gerais da moral, prestes a reconhecer ao primeiro uma superioridade de princípio por ter acabado com a “exploração”.
Existe atualmente um acordo bastante geral, pelo menos entre os membros do Instituto, sobre o grau de conaturalidade entre o comunismo de tipo bolchevique e o nacional-socialismo. A meu ver, é correta a expressão de Pierre Chaunu: gêmeos heterozigotos. Essas duas ideologias tomaram o poder no século XX. Elas têm como objetivo chegar a uma sociedade perfeita extirpando o princípio maligno que a bloqueia. Em um caso, o princípio maligno é a propriedade, então os proprietários, e depois, como o mal subsiste após a “liquidação enquanto classe” destes, a totalidade dos seres humanos, corrompidos pelo espírito do “capitalismo”, que resulta em penetrar até no próprio partido. No outro caso, o princípio maligno está situado nas raças chamadas “inferiores”, em primeiro lugar os judeus, depois, o mal continuando a subsistir após o seu extermínio, é preciso persegui-lo nas outras raças e na própria “raça ariana”, cuja “pureza” foi maculada. Comunismo e nazismo invocam para a sua legitimidade a autoridade da ciência. Eles se propõem reeducar a humanidade e criar um homem novo.
Essas duas ideologias se pretendem filantrópicas. O nacional- socialismo quer o bem do povo alemão e declara prestar serviço à humanidade ao exterminar os judeus. O comunismo leninista quer diretamente o bem de toda a humanidade. O universalismo do comunismo lhe dá uma imensa vantagem sobre o nazismo, cujo programa não é exportável. As duas doutrinas propõem “ideais elevados”, próprios para suscitar o devotamento entusiástico e atos heróicos. No entanto, elas ditam também o direito e o dever de matar. Citando Chateaubriand, profético neste caso: “No fundo desses diversos sistemas repousa um remédio heróico confesso ou subentendido: esse remédio é matar.” E Hugo: “Você pode matar este homem com tranqüilidade.” Ou categorias inteiras de homens. Justamente o que essas doutrinas fizeram quando chegaram ao poder, em uma escala desconhecida na história. E por essa razão que, aos olhos dos que são estranhos ao sistema, nazismo e comunismo são criminosos. Igualmente criminosos? Por ter estudado um e outro, conhecendo também os auges em intensidade no crime do nazismo (a câmara de gás) e em extensão do comunismo (mais de 60 milhões de mortos), o gênero de perversão das almas e dos espíritos operado por um e por outro, creio que não se pode entrar nessa discussão perigosa, que é preciso ser respondida simples e firmemente: sim, igualmente criminosos.
Uma das características do século XX é a de que não só a história foi horrível, do ponto de vista do massacre do homem pelo homem, mas também que a consciência histórica - e isto explica aquilo - teve uma dificuldade particular em se orientar corretamente. Orwell observava que muitos haviam se tomado nazistas por um horror motivado do bolchevismo, e comunistas por um horror motivado do nazismo. Isso realça o perigo das falsificações históricas. Vemos uma em vias de formação, e seria uma pena que legássemos ao próximo século uma história falseada. Para concluir, uma esperança e um receio. Foram necessários anos para se tomar consciência completa do nazismo, porque ele excedia o que se julgava possível e que a imaginação humana era incapaz de percebê-lo. Poderia acontecer o mesmo com o comunismo de tipo bolchevique, cujas obras abriram um abismo tão profundo, e que foram protegidas, como Auschwitz o foi até 1945, pelo inverossímil, pelo incrível, pelo impensável. O tempo, cuja função é revelar a verdade, fará talvez, lá também, o seu trabalho.