A DRAMÁTICA JORNADA DE UM PRISIONEIRO DA COREIA DO NORTE RUMO À LIBERDADE NO OCIDENTE
FUGA DO CAMPO 14
“Sua lembrança mais antiga é de uma execução. Ele caminhava com a mãe rumo a uma plantação de trigo perto do rio Taedong, onde guardas tinham arrebanhado vários milhares de ujprisioneiros. Alvoroçado pela multidão, o menino rastejou entre pernas adultas até a fileira da frente, onde viu um homem ser amarrado a um poste de madeira”. (P 15)
Numa encosta perto de sua escola, estava afixado um lema: TUDO DE ACORDO COM AS REGRAS E OS REGULAMENTOS. O menino memorizou as dez regras do campo, “Os Dez Mandamentos”. (P.16)
Nunca lhe ensinaram o que todo norte-coreano que frequenta a escola aprende: os americanos são “canalhas” que conspiram para invadir e humilhar a pátria. Coreia do Sul é a “puta” de seu patrão americano. A Coreia do Norte é um país grandioso cujos líderes corajosos e brilhantes são a inveja do mundo. Na verdade, ele ignorava a existência da Coreia do Sul, da China ou dos Estados Unidos. (P.17)
Nove anos depois do enforcamento de sua mãe, Shin contorceu-se para atravessar uma cerca elétrica e saiu correndo pela neve. Era o dia 2 de janeiro de 2005. Até então, nenhuma pessoa nascida em um campo de prisioneiros políticos na Coreia do Norte havia conseguido fugir. (P.19)
Tinha 23 anos de idade e não conhecia ninguém do lado de fora da cerca.
Depois de um mês, ele entrou na China, a pé. Em 2007, dois anos após a fuga, estava vivendo na Coreia do Sul. Quatro anos mais tarde, morava no Sul da Califórnia e era um embaixador sênior da Liberty in North Korea (LiNK; Liberdade na Coreia do Norte), um grupo americano de defesa dos direitos humanos.
Nas histórias de sobreviventes a campos de concentração, há um arco narrativo recorrente. Forças de segurança roubam o protagonista de uma família amorosa e de um lar confortável. Para sobreviver, ele abandona princípios morais, reprime sentimentos por outras pessoas e deixa de ser um ser humano civilizado. (P.21)
Amor, misericórdia e família eram palavras sem significado. Deus não desapareceu ou morreu. Shin nunca ouvira falar dele.
Ao contrário dos sobreviventes a um campo de concentração, Shin não foi arrancado de uma existência civilizada e obrigado a descer ao inferno. Ele nasceu e cresceu lá dentro. Aceitava seus valores. Chamava-o de lar. (P.22)
Os campos de trabalhos forçados da Coreia do Norte já duram duas vezes mais tempo que o Gulag soviético e cerca de 12 vezes mais que os campos de concentração nazistas.
Numa parte do mundo em que quase todos os outros países enriqueciam, seu povo via-se cada vez mais isolado, pobre e faminto. (P.25)
Homens e mulheres solteiros viviam em dormitórios segregados por sexo. A oitava regra do Campo 14, que Shin teve de memorizar, dizia: “Caso ocorra contato físico sexual sem prévia aprovação, os perpetradores serão fuzilados imediatamente. ” (P.35)
A mãe de Shin ficou ajoelhada sobre o cimo, ao sol, por uma hora e meia, com os braços estendidos para o céu. O menino manteve-se por perto e observou. Não sabia o que dizer a ela. Não disse nada. (P.37)
Apanhar e assar ratos tornou-se uma paixão para Shin. Ele os capturava em casa, nos campos e na latrina. Costumava encontrar-se com os amigos à noite, na escola primária, onde havia uma grelha a carvão, para assá-los. Tirava-lhes a pele, raspava-lhes as entranhas, salgava a sobra e mastigava o resto — a carne, os ossos e as minúsculas patinhas. (P.38)
Uma técnica alternativa de combate à fome consistia em imitar as vacas, regurgitando uma refeição recente e comendo-a de novo. Shin experimentou o artifício algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar sua fome. (P.39)
Desde os anos 1990, a Coreia do Norte tem sido incapaz de cultivar, comprar ou distribuir alimentos suficientes para sua população. Em meados dessa década, a fome matou talvez um milhão de norte-coreanos. Se uma taxa de mortalidade semelhante ocorresse nos Estados Unidos, reclamaria cerca de 12 milhões de vidas. (P.40)
Lá ensinavam linguagem e aritmética elementares, treinavam as crianças quanto às regras do campo e lhes lembravam a todo instante seu sangue iníquo. Os alunos da escola primária tinham seis dias de aula por semana. Os da escola secundária tinham sete, com um dia de folga por mês. Vocês têm de lavar os pecados de suas mães e seus pais, por isso tratem detrabalhar com afinco! dizia-lhes o diretor nas assembleias. (P.45)
As metas de longo prazo para os alunos da escola estavam implícitas no que os professores nunca se davam ao trabalho de ensinar. Eles diziam a Shin que a Coreia do Norte era um Estado independente e ressaltavam a existência de carros e trens. Perguntas não eram permitidas. (P.46)
Quando Shin e seus colegas chegaram ao ensino médio, mal estavam alfabetizados. Mas nessa altura a instrução em sala de aula chegara ao fim. Os professores se tornaram capatazes. A escola secundária era uma preparação para o trabalho em equipe nas minas, nos campos e nas florestas. No fim do dia, era um local de reunião para longas sessões de autocrítica. (p.48)
A Coreia do Norte se autointitulava o Paraíso dos Trabalhadores, mas, ao mesmo tempo que professava fidelidade aos ideais comunistas de igualdade, inventou um dos sistemas de castas mais rigidamente estratificados do mundo. (p.52)
“Era normal bater nos prisioneiros”, disse, explicando que seus instrutores o ensinaram a nunca sorrir e a pensar nos detentos como “cães e porcos”. “Ensinavam-nos a não pensar neles como seres humanos. Os instrutores nos diziam para não demonstrar piedade. Diziam: ‘Se o fizer, você se tornará um prisioneiro.’” (p.54)
Os guardas ficavam livres para dar vazão a seus apetites e excentricidades, muitas vezes abusando de jovens prisioneiras atraentes, que em geral consentiam em fazer sexo em troca de melhor tratamento. (p.55)
“Se isso resultasse em filhos, as mulheres e os bebês eram mortos”, disse An, observando que ele mesmo vira recém-nascidos serem golpeados até a morte com varas de ferro. “A teoria subjacente aos campos era purificar até três gerações das famílias dos que pensavam erroneamente. Seria incoerente, portanto, permitir o nascimento de mais uma geração. ”
Com mais frequência, porém, prisioneiros eram surrados, por vezes até a morte, simplesmente porque guardas estavam entediados ou de mau humor.
A nata da classe superior vive em Pyongyang, em grandes apartamentos ou em casas unifamiliares em condomínios fechados.
Membros da elite dignos de confiança e talentosos recebem permissões periódicas para deixar o país, servindo como diplomatas e executivos para companhias estatais.
De acordo com Kim, o esquema fraudulento de seu país funcionava assim: administradores do monopólio estatal de seguros baseados em Pyongyang emitiam apólices que cobriam desastres onerosos mas comuns no país, como acidentes em minas, colisões de trens e perdas de colheita em decorrência de enchentes. “O principal aspecto da operação de resseguros é que elas se assentam em desastres”, disse ele. “Toda vez que ocorre um desastre, ele se torna uma fonte de moeda forte” — para o governo. (p.57)
Em Pyongyang, o estilo de vida da classe superior é luxuoso apenas pelos padrões de um país onde um terço da população sofre de fome crônica. (p.59)
As elites têm apartamentos relativamente grandes e acesso a arroz. Têm preferência na compra de luxos importados, como frutas e bebidas. Mas, para os residentes em Pyongyang, a eletricidade é, na melhor das hipóteses, intermitente, a disponibilidade de água quente é rara e viajar para fora do país é difícil, exceto para diplomatas e homens de negócios patrocinados pelo Estado.
A renda per capita média na Coreia do Sul é 15 vezes mais alta que no Norte (1.900 dólares em 2009).
“Quem está do lado de fora tem uma compreensão errada do campo. Não são só os soldados que nos surram. Os próprios prisioneiros não são bondosos uns com os outros.
Não há nenhum sentido de comunidade. Sou um daqueles prisioneiros malvados. ” (p.66)
Desertores adolescentes da Coreia do Norte, ao chegar à Coreia do Sul, contam a psicólogos disponibilizados pelo governo um sonho recorrente: estão sentados a uma mesa com as famílias, comendo arroz quentinho. Entre a elite da capital, um dos símbolos de status mais cobiçados é a panela elétrica de arroz. (p.69)
Era a primeira exposição de Shin a uma bondade constante, e ele se sentia indizivelmente grato. Mas também achava aquilo intrigante. Não havia confiado na mãe para impedir que ele passasse fome. Na escola, não confiava em ninguém, com a possível exceção de Hong Sung Jo, e delatava todo mundo. (p.79)
Embora fosse um crime falar em fugir do Campo 14, não era contra as regras fantasiar sobre como seria a vida se o governo libertasse a pessoa. Tio disse a Shin que os dois seriam soltos um dia. Até lá, acrescentou, tinham a obrigação sagrada de permanecer fortes, viver o quanto fosse possível e nunca pensar em suicídio. (p.80)
Levaram Shin para a sala ampla e vazia onde, no início de abril, ele fora interrogado pela primeira vez. Estavam agora no final de novembro. Ele acabara de completar 14 anos. Fazia mais de meio ano que não via o sol. (p.82)
Execuções de pais por tentativa de fuga não eram incomuns no Campo 14. Shin testemunhou várias delas antes e depois do enforcamento da mãe. Não estava claro, porém, o que acontecia com as crianças que eles deixavam para trás. Até onde Shin podia determinar, nenhuma delas tinha permissão para frequentar a escola. (p.85)
Na escola e durante os trabalhos no campo, todos os alunos tinham de pedir permissão para urinar e defecar. Quando Shin fez seu primeiro pedido para ir ao banheiro após ser libertado da prisão, o professor negou. Ele tentava segurar-se durante o dia na escola, mas acabava urinando nas calças umas duas vezes por semana, em geral quando trabalhava ao ar livre com outros estudantes. Como era inverno e fazia muito frio, tinha de trabalhar com as calças enrijecidas de urina. (p.86)
Shin tornara-se consciente do que nunca poderia comer e do que nunca poderia ver. A imundície, o fedor e a aridez do campo esmagavam-lhe o espírito. (p.89)
A miséria de Shin nunca se transformou em completo desespero. Ele não tinha nenhuma esperança a perder, nenhum passado a lamentar, nenhum orgulho a defender. Não lhe parecia degradante lamber sopa caída no chão. Não se envergonhava de suplicar o perdão dos guardas. Não lhe perturbava a consciência trair um amigo por comida. Eram apenas técnicas de sobrevivência, não motivos para suicídio. (p.91)
Cerca de 60% dos alunos de sua turma foram designados para as minas de carvão, onde a morte acidental decorrente de desmoronamentos, explosões e envenenamentos por gás era comum. Muitos mineiros desenvolviam a doença do pulmão preto depois de
10 a 15 anos de trabalho no subsolo. A maioria morria na casa dos quarenta anos ou antes. Da forma como Shin a compreendia, uma colocação nas minas equivalia a uma sentença de morte. (p.99)
Os capatazes, por vezes, batiam nele e em outros trabalhadores relapsos, mas não com muita violência e nunca para matar. A fazenda de porcos era o melhor que o Campo 14 podia lhe oferecer. (p.101)
As eleições na Coreia do Norte são rituais vazios. Com candidatos escolhidos pelo Partido dos Trabalhadores coreano, elas são disputadas sem oposição. Mas Park temia que, se deixasse de votar, o governo perceberia sua ausência, o declararia traidor e mandaria sua família para um campo de trabalhos forçados. O voto não é obrigatório no país, mas o governo fica de olho nos que não comparecem. (p. 119)
Tal como os campos de concentração na Alemanha nazista, os campos de trabalhos forçados da Coreia do Norte usam o confinamento, a fome e o medo para criar uma espécie de caixa de Skinner, uma câmara fechada e rigorosamente regulada em que guardas se arrogam controle absoluto sobre os prisioneiros.4 No entanto, enquanto Auschwitz existiu por apenas três anos, o Campo 14 é uma caixa de Skinner com mais de cinquenta anos, um experimento longitudinal ainda em curso sobre repressão e controle mental, em que guardas criam prisioneiros a quem controlam, isolam e jogam uns contra os outros desde o nascimento. (p.123)
Há uniformes por toda parte na Coreia do Norte, a sociedade mais militarizada do mundo. O recrutamento é quase universal. Os homens servem por dez anos, as mulheres por sete. Com mais de um milhão de soldados no serviço ativo, cerca de 5% da população do país usa uniforme, contra apenas 1% nos Estados Unidos. Outros cinco milhões de pessoas servem no Exército de reserva durante grande parte de suas vidas adultas. O Exército é “o povo, o Estado e o Partido”, diz o governo, que não se qualifica mais como um Estado comunista. Seu princípio norteador, segundo a Constituição, é “em primeiro lugar as forças armadas”. (p.136)
Seu contexto eram 23 anos numa jaula ao ar livre dirigida por homens que
enforcaram sua mãe, fuzilaram seu irmão, aleijaram seu pai, assassinaram mulheres grávidas, surraram crianças até a morte, o ensinaram a trair sua família e o torturaram com fogo. (p.139)
O capitalismo insurgente apavorava o governo da Coreia do Norte, que se queixava publicamente de um declive escorregadio rumo à mudança de regime e à catástrofe. (p.147)
Em se tratando de ganhar dinheiro, a Coreia do Norte é uma total perda de tempo. A economia da Coreia do Sul é 38 vezes maior que a do Norte; seu volume de comércio internacional é 224 vezes maior.5 (p.188)
AS DES LEIS DO CAMPO 14
1. Não tente fugir.
2. É proibida a reunião de mais de dois prisioneiros.
3. 3. Não furte.
4. Os guardas devem ser obedecidos de maneira incondicional.
5. Qualquer pessoa que veja um fugitivo ou indivíduo suspeito deve denunciá-lo prontamente.
6. Os prisioneiros devem se vigiar uns aos outros e denunciar imediatamente qualquer comportamento suspeito.
7. Os prisioneiros devem mais do que cumprir a tarefa que lhes é designada cada dia.
8. Fora do local de trabalho, não deve haver nenhuma convivência entre os sexos por razões pessoais.
9.Os prisioneiros devem se arrepender sinceramente de seus erros.
10. Prisioneiros que violam as leis e regulamentos do campo serão fuzilados imediatamente.
Após a soltura
“Estou evoluindo, deixando de ser um animal”, diz ele. “Às vezes tento rir e chorar como as outras pessoas, só para ver se sinto alguma coisa.”